OS MANDATOS CRIACIONAIS:
Rev. João Ricardo
Ferreira de França.*
O registro
da revelação apresenta-se com três mandatos específicos Cultural, Social e
Espiritual. Estes mandatos são os condutores da aliança de Deus com seu povo.
Estes fios condutores da aliança configura a vida humana em sua totalidade.
Dentro desta concepção insere-se a ideia da tríplice estruturada bíblica de uma
cosmovisão que envolve: a criação, queda e redenção.
A tríplice estrutura e os mandatos criacionais
são discutidos e apresentados pela Teologia Bíblica. A definição desta ciência é a seguinte:
“Teologia bíblica é aquele ramo da teologia exegética que lida como o processo
da auto revelação de Deus registrada na Bíblia”.[1]
Podemos assegurar que a cosmovisão [baseada na
tríplice estrutura: criação, queda e redenção] é permeada pelos mandatos da
criação como fios condutores do pacto de Deus com o homem. Diante disso
passaremos a estudar as três ordenanças criacionais:
I – MANDATO CULTURAL.
O que significa este
mandato? Este mandato “acentua especificamente a relação da humanidade com o
cosmos” [2].
A criação é o teatro da glória de Deus e o palco de nossa atuação.
Onde se fundamenta este mandato? A resposta
encontra-se no texto de Gênesis 1.28: “E Deus os abençoou e lhe disse: sede
fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes
do mar, sobre as aves dos céus e sobre todo animal que rasteja pela terra.”
A primeira
frase deste texto “sede fecundos, multiplicai-vos” – “significa desenvolver o mundo
social: formar famílias, igrejas,
escolas, cidades, governos, leis. A segunda frase - enchei a terra e sujeitai-a
– significa subordinar o mundo natural:
fazer colheitas, construir pontes, projetar computadores, compor músicas.” E se
faz necessário insistir que a passagem em foco é “chamada de o mandato
cultural, porque nos fala que nosso propósito original era criar culturas,
construir civilizações – nada mais”[3]
O mandato
cultural implica na redenção de culturas inteiras. O vocábulo dominar, empregado
aqui nesta passagem, indica a ideia de “capacidade real e supervisão”. A
palavra hebraica empregada “ וְיִרְדּוּ ”(veiredu) que vem da raiz “hdr” (radar) que tem o sentido de “governar, dominar” e até “subjulgar”[4].
Sabemos que em “Gênesis 1.26, 28, o verbo ocorre com um sentido positivo quando
se declara que a humanidade, criada à imagem de Deus, deve subjugar a terra e
reinar sobre (rdh) todos os animais.
À espécie humana é dada a responsabilidade sobre a criação de Deus, como fica
evidente pelo fato de que esse comando é parte da bênção de Deus (1.28)”[5].
Devemos
ressaltar que o uso do verbo dominar aqui não consistia em uma “licença para a
humanidade abusar das ordens da criação”, mas pelo contrário ele deveria “ser
apenas um vice-regente de Deus, e a ele, tinha de prestar contas”.[6]
O aspecto da “Imago Dei” é a força
propulsora para o conceito do mandato cultural na esfera do domínio neste
mundo.
Ao
estudarmos sobre este mandato aprendemos que o homem é chamado para santificar
e colocar cada esfera de sua vida, sua educação, seus recursos nas mãos de
Cristo; e, feito isso, saber administrar cada área já mencionada para a glória
de Deus neste mundo. Nancy Pearcey nos alerta: “A lição do mandato cultural é
que nosso senso de cumprimento depende de nos dedicarmos ao trabalho criativo e
construtivo”.[7]
A isso nós chamamos de redenção cósmica. Deus nos deu este mandato para
exercermos o domínio nas mais diversas áreas do saber; e para o resgate das
culturas para a glória dele somente.
II – O MANDATO SOCIAL
O segundo
mandato a ser considerado é chamado de Mandato Social. Van Groningen vai dizer que
este mandato pactual “fala das relações sociais’[8].
Este mandato está fundamentado em Gênesis 2.21-24:
Então, o SENHOR Deus fez cair pesado sono sobre o homem, e
este adormeceu; tomou uma das suas costelas e fechou o lugar com carne. E a
costela que o SENHOR Deus tomara ao homem, transformou-a numa mulher e lha
trouxe. E disse o homem: Esta, afinal, é osso dos meus ossos e carne da minha
carne; chamar-se-á varoa, porquanto do varão foi tomada. Por isso, deixa o
homem pai e mãe e se une à sua mulher, tornando-se os dois uma só carne.
Temos a estrutura familiar estabelecida. A
família é ordenada em termos de um desapegar-se
e unir-se a outrem. Embora, já tenhamos considerado que um dos aspectos
do mandato cultural é a criação familiar. Isto se torna evidente por causa da
ordem divina de haver uma “fecundação e multiplicação” em Gênesis 1.26-28;
todavia, esta ordem da formulação familiar está pertinentemente estabelecida
aqui neste trecho de Gênesis 2.21-24.
A criação
da mulher tem como objetivo evitar a solidão de Adão. O princípio extraído aqui
é que o homem não é uma ilha, isolada, sozinha sem relação com outros. O
companheirismo é algo que Deus prima em sua criação – o casamento não deve ser
uma prisão para os solteiros, mas a liberdade da amizade e cumplicidade
matrimonial.
Longman
III tem uma palavra muito significativa sobre esta realidade e declara que o
“casamento envolve um homem e uma mulher deixarem os pais e constituírem uma
nova unidade familiar”.[9] Van
Groningen novamente nos diz que este “mandato pôde ser dado porque Deus criou a
humanidade à sua imagem e semelhança e como macho e fêmea. O relacionamento
tinha que ser visto como um de igualdade diante de Deus”.[10]Aqui
aprendemos que a organização familiar exige uma relação heterossexual. Adão se
une a sua mulher. E não a outro homem, nem mesmo uma mulher se une a outra. Mas
o que está escrito é que “macho e fêmea” formam uma unidade neste mandato.
Em
Gênesis 1.28 temos a extensão deste mandato de forma interessante. A finalidade
na geração de filhos e filhas para cumprir este mandato pactual era de capital
importância. “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra”. O verbo fecundar
que aparece no texto no hebraico é “פְּר֥וּ” – peru – tem o
sentido de “frutificar”. O mandato social estabelece uma necessidade que o
homem tem constituir familias e sociedades para cumprir a ordem original de
Deus dada à raça humana. O homem deveria continuar sua posição de dominio
social com a perpetuação de sua prole.
III – O MANDATO ESPIRITUAL.
O terceiro aspecto a
ser considerado é o Mandato Espiritual. Envolvia comunhão e obediência a Deus.
Esta comunhão estava marcada pelo dia de adoração ao soberano de todas as
coisas. Conforme vemos em Gênesis 2.1-4:
Assim, pois, foram acabados os céus e a terra e todo o seu
exército. E, havendo Deus terminado no dia sétimo a sua obra, que fizera,
descansou nesse dia de toda a sua obra que tinha feito. E abençoou Deus o dia
sétimo e o santificou; porque nele descansou de toda a obra que, como Criador,
fizera. Esta é a gênese dos céus e da terra quando foram criados, quando o
SENHOR Deus os criou.
O conceito
embrionário de um dia descanso esta alicerçado nesta passagem que evoca a
comunhão primeva que o casal Adão e Eva desfrutavam com Deus. O shabbath de
Deus entra em ação na narrativa bíblica “וַיִּשְׁבֹּת֙ ” ao
trazer o sábado à existência Deus estava condescendo ao homem para que este
pudesse desfrutar de uma comunhão intima e pessoal com Deus.
Devemos
lembrar que a guarda do sábado estava ligada aos dois mandatos pactuais
anteriores:
A convicção que a guarda do sábado é uma obrigação perpétua
se baseia em parte na instituição do sábado em Gênesis 2.1-3. Juntamente com o
trabalho (Gn. 1.24; 2.15) e o casamento (Gn. 2.18-25), Deus instituiu o sábado
para governar a vida de toda a humanidade. Assim como são permanentes as
ordenanças do trabalho e do casamento, assim é a ordenança do sábado”.[11]
No mandato
espiritual ou de comunhão o homem é criado para que possa deleitar-se no dia
que Deus separou para ele. Esta comunhão com Deus se dava no ambiente
litúrgico.
Ainda
neste mandato estava envolvida a ideia de obediência perene a Deus conforme
vemos em Gênesis 2.16-17:
E o SENHOR Deus lhe deu
esta ordem: De toda árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do
conhecimento do bem e do mal não comerás; porque, no dia em que dela comeres,
certamente morrerás.
Aqui temos
o homem sendo chamado a pactuar com Deus. Este pacto tem sido considerado como
pacto das obras, e parece-nos, que alguns sugerem que Adão deveria obedecer
este pacto para obter vida eterna. Todavia, alguns preferem chama-lo de pacto
de vida; e por quê? A resposta é simples aqui Deus não lhe promete a vida, mas
lhe assegura da morte certa caso o desobedeça.
A vida
marcada pela comunhão com Deus e por uma espiritualidade autêntica. Adão
deveria preservar essa comunhão que implicava em vida; todavia, este homem
deliberadamente decide violar o pacto, violar a comunhão e em resposta a esta
rebeldia ele recebe a morte.[12]
Este
mandato pactual implica numa vida de obediência e adoração a Deus de forma
inegociável. O homem foi criado para glorificar a Deus e se deleitar nele, e
isto é feito mediante a obediência irrestrita a Palavra de Deus bem como em
celebração litúrgica a Deus.
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Na Teologia Reformada
este tema dos Mandatos Criacionais é amplamente desenvolvido, todavia, é pouco
aplicado e lecionado à igreja de Cristo. Podemos, ver nesta breve introdução o
quão é importante para a vida e maturidade da igreja. Vimos neste estudo que a
ordem para governar a terra tem sido negligenciada pela igreja de nossos dias;
bem como a preservação das relações sociais hoje é ameaçado pela criação de
leis contrárias a Palavra de Deus.
No
espectro espiritual podemos tirar como implicação o fato da fraqueza e letargia
da igreja deve-se ao fato da negligência profunda de uma comunhão autêntica com
Deus no dia do Senhor (domingo ou sábado cristão); pois, a igreja de hoje está
caminhando para o secularismo, individualismo e pragmatismo – o divino não
ocupa, mas a centralidade na vida das pessoas; a comunhão virou apenas temas de
sermões para o final de ano, pois, cada qual vive no seu mundo sem viver a
comunhão dos santos e a igreja tem empregado esforços para que haja resultados
imediatos – negligenciando o crescimento saudável da igreja por meio do culto
corporativo no dia do Senhor.
Devemos
reconhecer que fomos e somos criados para a obediência irrestrita a Deus e nos
deleitarmos nele; devemos cumprir os nossos papéis originais intencionados por
Des para a nossa vida. Deus nos criou para que tivéssemos o domínio sobre este
mundo como vice-regentes, reconhecendo que cada espaço na criação é reclamado
por Cristo como sendo de sua exclusiva propriedade.
Neste
processo devemos trazer à mente e ao coração que as nossas famílias são também
projetos de Deus para nós, constituir famílias está atrelado à intenção
original de Deus para a humanidade. A sociedade necessita de famílias
equilibras e tementes a Deus o casamento e a procriação de uma descendência
santa são alicerces fundamentais para a construção de uma sociedade justa.
Por fim,
devemos trazer ao coração que aquilo que confere sentido à existência é eterno
e imperecível, por isso, devemos reservar um tempo para a contemplação e
adoração ao Deus eterno que tudo criou. O encontro com Yahweh no seu dia é de
capital importância para nós, pois, é no culto onde a nossa alma é alimentada e
alentada pela Palavra imperecível de Deus. O culto familiar, o culto individual
e o público são oportunidades únicas de um deleitoso prazer em Deus.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS:
1.
GRONINGEN,
Gerard Van. Criação e Consumação – O
Reino, a Aliança e o Mediador. Tradução: Denise Meister. São Paulo: Cultura
Cristã, 2002, volume 1.
2.
____________________.
Revelação Messiânica no Antigo
Testamento. Tradução: Cláudio Wagner. São Paulo: Cultura Cristã, 2003.
3.
KAISER
JR., Walter C. O Plano da Promessa de
Deus – Teologia Bíblica do Antigo e Novo Testamentos. Tradução: Gordon
Chown, A.G. Mendes. São Paulo: Vida Nova, 2011.
4.
KILPP,
Nelson. Dicionário Hebraico-Portugês e
Aramaico-Português. São Leopoldo: Sinodal; Petrópolis: Editora Vozes, 1987.
5.
LONGMAN
III, Tremper. Como Ler Gênesis. Márcio
Lourenço. São Paulo: Vida Nova, 2009.
6.
PEARCEY,
Nancy. Verdade Absoluta – Libertando o
Cristianismo de seu Cativeiro Cultural. Tradução: Luis Aron. Rio de
Janeiro: CPAD, 2011.
7.
PIPA,
Joseph. O Dia do Senhor. Tradução:
Hope Gordon Silva. São Paulo: Os puritanos, 2000.
8.
VANGEMEREN,Willem
A.(org.) Novo Dicionário Internacional
de Teologia e Exegese do Antigo Testamento. Tradutor: Afonso Teixeira Filho
e outros. São Paulo: Cultura Cristã, 2011, p.1052.
9.
VOS,
Geerhardus. Teologia Bíblica – Antigo e
Novo Testamentos. Tradução: Alberto Almeida de Paula. São Paulo: Cultura
Cristã, 2010.
0029
013
Conta:
00332964-0
* O autor é Ministro da Palavra
pela Igreja presbiteriana do Brasil. Atualmente é pastor na Primeira Igreja
Presbiteriana de Piripiri – PI. Formou-se em Teologia Reformada no Seminário
Presbiteriano do Norte (SPN) em Recife- PE. Foi professor de línguas bíblicas
(Grego e Hebraico) no Seminário Presbiteriano Fundamentalista do Brasil (SPFB)
Recife – PE. É casado com Géssica Araújo Soares Nascimento de França e é pai de
Lucas Luis Nascimento de França.
[1] VOS, Geerhardus. Teologia
Bíblica – Antigo e Novo Testamentos. Tradução: Alberto Almeida de Paula.
São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p.16.
[2] GRONINGEN, Gerard van. Revelação
Messiânica no Antigo Testamento. Tradução: Cláudio Wagner. São Paulo:
Cultura Cristã, 2003, p.100.
[3] PEARCEY, Nancy. Verdade
Absoluta – Libertando o Cristianismo de seu Cativeiro Cultural. Tradução:
Luis Aron. Rio de Janeiro: CPAD, 2011, p.51.
[4] KILPP, Nelson. Dicionário
Hebraico-Portugês e Aramaico-Português. São Leopoldo: Sinodal; Petrópolis:
Editora Vozes, 1987, p.223.
[5] VANGEMEREN,Willem A.(org.) Novo
Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento. Tradutor:
Afonso Teixeira Filho e outros. São Paulo: Cultura Cristã, 2011, p.1052.
[6] KAISER JR., Walter C. O
Plano da Promessa de Deus – Teologia Bíblica do Antigo e Novo Testamentos.
Tradução: Gordon Chown, A.G. Mendes. São Paulo: Vida Nova, 2011, p.39.
[7] PEARCEY, Nancy. Verdade
Absoluta – Libertando o Cristianismo de seu Cativeiro Cultural. Tradução:
Luis Aron. Rio de Janeiro: CPAD, 2011, p.53
[8] GRONINGEN, Gerard van. Revelação
Messiânica no Antigo Testamento. Tradução: Cláudio Wagner. São Paulo:
Cultura Cristã, 2003, p.100.
[10] GRONINGEN, Gerard
Van. Criação e Consumação – O Reino, a
Aliança e o Mediador. Tradução: Denise Meister. São Paulo: Cultura Cristã,
2002, volume 1, p.91.
[11] PIPA, Joseph. O Dia do Senhor. Tradução: Hope Gordon
Silva. São Paulo: Os puritanos, 2000, p. 29.
[12] Cf. GRONINGEN, Gerard
Van. Criação e Consumação – O Reino, a
Aliança e o Mediador. Tradução: Denise Meister. São Paulo: Cultura Cristã,
2002, volume 1, p.92.
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